04 março 2006

TARKOVSKYANDO

Edu, ja que vc e um grande conhecedor de Tarkovsky, vamos conversar sobre O sacrificio. Vi outro dia, quando ainda estava lendo Os intelectuais na Idade Media do Le Goff (aquele autor que vimos para vender no sebinho da Augusta). Estranhamente, uma coisa tem tudo a ver com a outra, porque, no seculo XIII e ainda mais no XIV, ha uma onda de anti-intelectualismo (nao discutirei aqui terminologia; direi que sao intelectuais e pronto). Aos clericos do XII que estudavam e ensinavam, que so juravam pela sciencia, aqueles mesmo da escolastica - dialetica, autoridade dos antigos e razao - se opuseram os do XIII, os das ordens mendicantes, os intelectuais institucionais, conselheiros politicos, a favor de um pensamento mais mistico e poetico. Defendiam a "douta ignorancia", separavam o racional do espiritual. O divino nao podia ser racionalizado.

E essa oposicao que vejo no filme: o admiravel desenho do Leonardo, A adoracao dos magos, que e o exemplo perfeito da racionalidade na utilizacao da perspectiva para organizar o espaco do quadro. Contra a arvore morta que se rega, contra a feiticeira, contra a natureza mesmo (a historia que ele conta do jardim que ele limpa para a mae) que e indomavel pela razao.

E o sacrificio que e a tentativa de reatar com o sentido das coisas, com a natureza, com o espiritual. Esse sacrificio que passa pelo fogo - como em Nostalgia - que purifica, mas que, ao mesmo tempo, esta associado a loucura. Na iconografia medieval (nao sei das outras), o fogo de cabeca para baixo indica a loucura, enquanto o de cabeca para cima pode ser sabedoria, amor e purificacao. De resto, o louco e aquele que ve sentido em tudo, associa todas as coisas, ao contrario de nos, os super racionais, que nao vemos mais sentido em nada.

O que vc acha? Vi sentindo onde nao tem? Estou viajando? Gostei muito em todo caso.

Um comentário:

Edu Mendes disse...

Putz, não sou especialista em Tarkovsky nem medievalista, mas concordo parcialmente com o que você falou.
O que eu sei é que ele sempre foi um artista extremamente espiritualizado e que o tema “espiritualidade” atravessa toda a sua filmografia, primeiro de maneira mais sutil e gradualmente vai assumindo contornos panfletários que acabam culminando no Sacrfício, filme em que ele deixa claro que a fé deve se sobrepor ao materialismo.
Isso também foi uma preocupação de algumas dessas correntes que você citou, mas o Tarkovsky acreditava que o conhecimento e a razão tinham exatamente o objetivo de conduzir à fé.
Os russos, sendo cristãos ortodoxos e eslavos, inevitavelmente associam a fé ao ato de sacrifício, daí as escolhas do personagem do filme.
Como o Tarkovsky se considerava mais poeta do que cineasta, acho que todas as observações que você fez sobre a cenografia são uma tentativa de expressar poeticamente as crenças dele.
Ou não, sei lá...
Em todo caso, também gosto muito de Tarkovskyar.

Nesse link tem um outro comentário ineterssante sobre O Sacrifício:
http://www.geocities.com/contracampo/notas
sobreandreitarkovski.html